06 novembro 2008

Antigo… mas fabuloso!


Este artigo já é um pouco antigo e foi publicado na revista VISÃO Online, e escrito por Miguel Carvalho com o título "A Devida Comédia, mas como acho que é (ainda e cada vez mais!) actual, vou transcrevê-lo, para que quem não o conheça possa "deliciar-se (ou preocupar-se!).

 "Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo.

Criancinhas

A criancinha quer PlayStation. A gente dá.
A criancinha quer estrangular o gato. A gente deixa.
A criancinha berra porque não quer comer a sopa. A gente elimina-a da ementa e acaba tudo em festim de chocolate.
A criancinha quer bife e batatas fritas. Hambúrgueres muitos. Pizzas, umas tantas. Coca-Colas, às litradas. A gente olha para o lado e ela incha.
A criancinha quer camisola adidas e ténis nike. A gente dá porque a criancinha tem tanto direito como os colegas da escola e é perigoso ser diferente.
A criancinha quer ficar a ver televisão até tarde. A gente senta-a ao nosso lado no sofá e passa-lhe o comando.
A criancinha desata num berreiro no restaurante. A gente faz de conta e o berreiro continua.

Entretanto, a criancinha cresce. Faz-se projecto de homem ou mulher. Desperta.

É então que a criancinha, já mais crescida, começa a pedir mesada, semanada, diária. E gasta metade do orçamento familiar em saídas, roupa da moda, jantares e bares.
A criancinha já estuda. Às vezes passa de ano, outras nem por isso. Mas não se pode pressioná-la porque ela já tem uma vida stressante, de convívio em convívio e de noitada em noitada.
A criancinha cresce a ver Morangos com Açúcar, cheia de pinta e tal, e torna-se mais exigente com os papás. Agora, já não lhe basta que eles estejam por perto. Convém que se comecem a chegar à frente na mota, no popó e numas férias à maneira.

A criancinha, entregue aos seus desejos e sem referências, inicia o processo de independência meramente informal.
A rebeldia é de trazer por casa. Responde torto aos papás, põe a avó em sentido, suja e não lava, come e não limpa, desarruma e não arruma, as tarefas domésticas são"uma seca".
Um dia, na escola, o professor dá-lhe um berro, tenta em cinco minutos pôr nos eixos a criancinha que os papás abandonaram à sua sorte, mimo e umbiguismo. A criancinha, já crescidinha, fica traumatizada. Sente-se vítima de violência verbal e etc. e tal.
Em casa, faz queixinhas, lamenta-se, chora. Os papás, arrepiados com a violência sobre as criancinhas de que a televisão fala e na dúvida entre a conta de um eventual psiquiatra e o derreter do ordenado em folias de hipermercado, correm para a escola e espetam duas bofetadas bem dadas no professor "que não tem nada que se armar em paizinho, pois quem sabe do meu filho sou eu".

A criancinha cresce. Cresce e cresce.

Aos 30 anos, ainda será criancinha, continuará a viver na casa dos papás, a levar a gorda fatia do salário deles.
Provavelmente, não terá um emprego. "Mas ao menos não anda para aí a fazer porcarias".
Não é este um fiel retrato da realidade dos bairros sociais, das escolas em zonas problemáticas, das famílias no fio da navalha? 
Pois não, bem sei. Estou apenas a antecipar-me.

Um dia destes, vão ser os paizinhos a ir parar ao hospital com um pontapé e um murro das criancinhas no olho esquerdo.

E então teremos muitos congressos e debates para nos entretermos."

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